3. Milton Santos e o negro no Brasil

Como parte das celebrações do Dia Nacional da Consciência Negra e da imortalidade de Zumbi dos Palmares, o Centro Cultural José Bonifácio, situado na cidade do Rio de Janeiro, promoveu nos dias 17 e 18 de novembro de 1997 a Kilunge – Primeira Feira do Livro Afro-Brasileiro. 

Durante o evento Milton Santos falou sobre "As exclusões da globalização: pobres e negros". A palestra foi transcrita pela equipe da revista Thoth, sob responsabilidade do senador da república Abdias Nascimento e editada em Brasília. A íntegra da palestra foi publicada no ano seguinte e está no n. 4, p. 147-160, 1998, disponível: https://ipeafro.org.br/acervo-digital/leituras/obras-de-abdias/revista-thoth/.

Deste texto destaco (SANTOS, 1998, p. 155):

A herança nos traz, num País como o Brasil, um modelo cívico subalterno ao modelo econômico. Sempre foi assim. Em todos os tempos, o modelo econômico subordina o modelo cívico, basta ver agora as crises da economia brasileira e a palavra de ordem, dita de cima, segundo a qual quem não está de acordo está contra o Brasil, e a frase, dita até nas oposições, segundo a qual temos que ajudar o modelo. Isso está ligado a esse peso do modelo econômico em oposição ao modelo cívico. Creio que a história dos negros teria muito a lucrar se fosse reescrita a partir de uma visão que propusesse uma nova escrita com base na questão do modelo cívico.

A subalternidade do modelo cívico atrofiou, por exemplo, o debate da previdência no Brasil, assim como atrofia o debate da questão da função pública. Esse debate se empobreceu no Brasil porque se pede aos  velhos que cuidem de si próprios, e a sociedade aceita essa demanda hedionda, facilitando a instalação entre nós do projeto segundo o qual os brasileiros assistirão tranquilamente ao genocídio da população – porque é isso que se está preparando. O abandono programado dos velhos, o abandono programado dos pobres, o abandono programado dos negros são três genocídios que estão inscritos no processo político atual e para o qual as vozes dos partidos de oposição são praticamente nulas, porque aceitam o debate nos termos em que está colocado.  

Em 1998, Milton Santos deu uma entrevista para a revista Caros Amigos, que foi digitalizada e foi publicada em 2016 no site do Portal Geledés (Entrevista, 2016[1998]) e os entrevistadores foram: Marina Amaral, Sério Pinto de Almeida, Leo Gilson Ribeiro, Georges Bourdoukan, Roberto Freire, João Noro, Sérgio de Souza:

Sérgio de Souza – Todos os negros têm medo?

Milton Santos – Todos têm. Posso fazer uma confissão? Tenho uma certa simpatia por esse rapaz, o Pitta. Esse ataque todos os dias, isso me choca, me dói também. Nunca votaria nele, não vou visitá-lo até que acabe o governo dele, mas no fundo sou solidário, porque sei que uma parte disso vem do fato de ele ser negro. Pisado como ele é pisado todos os dias, quando não se faz isso com ninguém!

Alguns anos depois, em 2000, escreveu para a Folha de São Paulo um texto "Ser negro no Brasil hoje: Ética enviesada da sociedade branca desvia enfrentamento do problema negro" (SANTOS, 2000):

"No caso do Brasil, a marca predominante é a ambivalência com que a sociedade branca dominante reage, quando o tema é a existência, no país, de um problema negro. Essa equivocação é, também, duplicidade e pode ser resumida no pensamento de autores como Florestan Fernandes e Octavio Ianni, para quem, entre nós, feio não é ter preconceito de cor, mas manifestá-lo. Desse modo, toda discussão ou enfrentamento do problema torna-se uma situação escorregadia, sobretudo quando o problema social e moral é substituído por referências ao dicionário. Veja-se o tempo politicamente jogado fora nas discussões semânticas sobre o que é preconceito, discriminação, racismo e quejandos, com os inevitáveis apelos à comparação com os norte-americanos e europeus. Às vezes, até parece que o essencial é fugir à questão verdadeira: ser negro no Brasil o que é? Talvez seja esse um dos traços marcantes dessa problemática: a hipocrisia permanente, resultado de uma ordem racial cuja definição é, desde a base, viciada. Ser negro no Brasil é frequentemente ser objeto de um olhar vesgo e ambíguo. Essa ambiguidade marca a convivência cotidiana, influi sobre o debate acadêmico e o discurso individualmente repetido é, também, utilizado por governos, partidos e instituições." (SANTOS, 2000)

Referências

SANTOS, M. Ser negro no Brasil hoje: Ética enviesada da sociedade branca desvia enfrentamento do problema negro. Folha de São Paulo, São Paulo, domingo, 07 de maio de 2000. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0705200007.htm

SANTOS, Milton. As exclusões da globalização: pobres e negros. Thoth, Brasília, n. 4, p. 147-160, 1998. Disponível: https://ipeafro.org.br/acervo-digital/leituras/obras-de-abdias/revista-thoth/

Entrevista explosiva com Milton Santos. Portal Geledés, 2016 [1998]. (Publicada originalmente na revista Caros Amigos). Disponível: https://www.geledes.org.br/entrevista-explosiva-com-milton-santos/

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