Nossas hipócritas elites arreganham os dentes

Opino sobre algumas reações de indignação, repulsa e hostilidade das elites brasileiras, mais abertamente manifestadas em momentos de disputa eleitoral, como o atual.

O que  eu convenciono denominar de “elites brasileiras” não são somente aqueles privilegiados “menos de 10%” que se apropriam de mais da metade da renda nacional, refiro-me principalmente àqueles que imaginam ter saído do entorno da Casa-Grande, imaginam-se a meio caminho de Miami e se nutrem da simbiose entre tais entornos simbólicos... ou seja, nutrem em si o espírito de Miami com pretensões de neocolonialismo republicano, uma espécie ascendente de “república de coxinhas”.

Mas antes de tratar de nossa desditosa elite, quero falar de algumas frustrações pessoais e um certo sentimento de autocrítica que agora eu ensejo. Nesses tempos de polarização eleitoral tenho refletido sobre um sentimento de frustração que vinha nutrindo há anos. Me sentia frustrado porque nos últimos 12 anos os governos de Lula e Dilma ousaram pouco, pelo menos na medida de minhas expectativas. Acredito que poderiam ter avançado muito mais em termos de redistribuição de renda, salvaguarda e garantia de direitos civis para as minorias, gestão sob a égide do Direito Público, equanimidade de políticas sociais, incremento de dinâmicas de democracia participativa...

Entretanto, observo que o pouco realizado (sob meu ponto de vista) gerou e tem aflorado uma incontida e odiosa reação por parte das elites desse país (elites econômicas, corporativas, patriarcais, agrárias, industriais, empresariais etc.). Penso agora, que se os governos Lula e Dilma tivessem contemplado melhor as minhas expectativas, há muito tempo já teria ocorrido um golpe de Estado no Brasil.

Em verdade, Lula resistiu à tentação de buscar governabilidade diretamente com as praças, preferindo lidar com os vícios republicanos dos mercadores e traficantes da pequena política, com o da dependência a uma forma de “governabilidade” traficada em bastidores palacianos. Creio que fez bem porque, para tanto, seu único caminho seria o de uma aventura populista, pois não soube dinamizar e fomentar melhor organicidade para canais e instâncias de democracia social (a verdadeira nova política). O a escolha pelo viés populista teria acirrado muito mais os ânimos e as reações hostis, em cenário próximo ao venezuelano, com decorrências graves e violentas.

As elites brasileiras discretamente aplaudiram o comedimento e reponsabilidade democrática de Lula, que sequer tentou uma nova reeleição. Mas nem por isso consideraram o seu governo mais confiável. De todo o modo, acostumadas com os governos condominiais, aprenderam a se adaptar bem nos últimos 12 anos. Com expoentes enxertados no governo e domesticados na oposição dita “civilizada”, continuaram no comensalismo secular e reproduziram, com a cumplicidade e conivência de dirigentes petistas, o mesmo de sempre: capitalismo sem riscos, preponderância de interesses privados e práticas de corrupção.

Por que agora não lhes convém mais tal intermediário, tornado incômodo e inconfiável? Por que não querem o atual governo como síndico de seu condomínio?

O atual governo retirou milhões de famílias da miséria e pobreza, gerando um enorme capital eleitoral e, questão crucial, oportunidades de incluir esse contingente pela via das políticas de mercado e de dependência ao consumismo induzido... mas ao mesmo tempo gera o risco “esquerdista” de incluí-los pela garantia e apropriação de políticas públicas e sociais.

O atual governo ousou redistribuir renda pela via de bolsas compensatórias, para além da medida e o mero propósito de amortecimento de tensões sociais. O que foi convenientemente oportuno para incrementar a microeconomia e, daí, salvaguardar a macroeconomia diante das intempéries e ciclos de crises econômicas internacionais. Nossas elites e “classes médias”, que há décadas usufruem de “bolsas renúncia fiscal” (“compensações” fiscais para gastos com ensino particular e planos de saúde), se indignaram e protestam contra o que consideram um subsídio à leniência dos mais pobres, incentivo para que se insinuem para “fora do seu devido lugar”.

O atual governo busca alternativas para uma espécie de (neo)desenvolvimentismo que, mesmo domesticado, está em via colateral e não na estrada acessória ao neoliberalismo global. Além do mais, o Brasil tem dado péssimos exemplos ao fomentar iniciativas autônomas (como o banco do BRIC’s) e de solidariedade com “mercados periféricos altamente dependentes” (da América Latina e África).

O atual governo permite e até estimula que as grandes empreiteiras nacionais explorem e causem danos ambientais em países mais pobres, mas insiste também em fomentar iniciativas bilaterais de cooperação e apoio em políticas sociais, com produção de certa autonomia e menos dependência.

O atual governo tem sido parceiro do agronegócio exportador, tem sido muitas vezes negligente com o controle de agrotóxicos e tímido no controle de danos ambientais... mas não o suficiente para o afã predatório do latifúndio. Além do mais, ousou garantir mais crédito para a agricultura familiar em minifúndios (responsável por mais de 80% dos alimentos produzidos e consumidos no país).

O atual governo incrementou e subsidiou fortemente o mercado educacional ao pagar bolsas para a inclusão de trabalhadores ao ensino universitário privado (como o Prouni e outras tantas), mas ousou estabelecer uma política de acesso à universidade pública pela via de cotas sociais e raciais... desnudando as mentiras sobre “igualdade de oportunidades” dos discursos meritocráticos.

O atual governo, a partir das agências reguladoras criadas pelo PSDB, muitas vezes privilegiou os interesses de operadoras de concessões públicas, de planos de saúde, de produtores de insumos públicos etc. Contudo, ousou estabelecer limites e provocar tensões ocasionais.

O atual governo tem sido conivente com o agenciamento e empresariamento da gestão pública para Organizações Sociais, OSCIP’s e congêneres, mas não desmontou suficientemente a Administração Direta, tendo, inclusive, melhorado a transferência federativa de recursos financeiros para aplicação em políticas públicas nos estados e municípios.

O atual governo manteve relação amigável com os mercadores de doenças, mas ousou “afrontar” o complexo de superioridade de parte considerável da corporação médica, ao buscar garantir o trabalho de outros médicos, estrangeiros, em vazios assistenciais desinteressantes para a exploração mercantil de um SUS acessório às operadoras de planos de saúde.

A maioria dos médicos, ciosos de seu “carisma institucionalizado”, não se mostrou somente contrariada, partiu para um confronto histérico e desmedido... Conduzidos ideologicamente pelo furor corporativo com sentimento de autoestima vilipendiada, muitos não vacilam em trocar qualquer escrúpulo ético pela “punição” eleitoral de tamanha ousadia.

Há muitas outras iniciativas e medidas do atual governo que têm gerado grande desconfiança e ódio das elites brasileiras porque abrem pontes, brechas e portas para mudanças sociais que põem em risco o seu condomínio.

Enfim, os donos do condomínio, entre insatisfeitos e indignados, querem agora um síndico mais confiável.

Nas eleições do início de Outubro já obtiveram uma nova assembleia mais confiável para representar seus interesses no parlamento (a maioria do Congresso Nacional é nitidamente conservadora naquilo que há de pior em termos de pequena política). Agora partem com tudo para a disputa do segundo turno da eleição presidencial.

Seu principal recurso e discurso? Nada de novo no cenário político do país: a indignação teatral contra a corrupção, o apelo grandiloquente de Carlos Lacerda que retorna mais uma vez.

Para isso é necessário ressignificar a história do país em manifesto eleitoral. Os crimes de corrupção e mazelas morais de 125 anos de história república brasileira passam a ser resumidos em problemas causados por uma quadrilha de “petralhas” nos últimos 12 anos. Caberia, então, ao povo brasileiro, num arroubo eleitoral, substituir os atuais “corruptos” pelos anteriores, numa reciclagem que não satisfaz moralmente a ninguém, mas temporariamente é um desencargo de consciência civil no inconsciente coletivo

A grande mídia brasileira, imbuída de seu quarto poder e nuciantura moral da hipocrisia de nossas elites, investe pesadamente para nocautear quaisquer pretensões de continuidade do atual governo.

Anunciam que para acabar com a corrupção “Mudar é preciso”, eis o discurso que agora busca hegemonia... Anunciam que retornar ao tucanalhato já não é retroceder... torna-se um meia-volta-volver e avante. Insistem eles que precisamos tomar um “choque de gestão” para, então, privatizar o Estado brasileiro e voltar a pagar as contas de nosso reingresso na onda neoliberal... como cidadãos consumidores.

O refluxo desta onda neoliberal está arrasando países como a Grécia, Portugal e Espanha, mas eles precisam de um bom exemplo na América Latina para compensar momentaneamente perdas e danos... nada melhor do que o Brasil, nada mais conveniente do que uma elite sedenta de restauração com líderes confiáveis ao capital financeiro

Se não queremos uma democracia servil e um governo síndico de condomínios privados, se não queremos uma “república de coxinhas”, devemos lutar por um governo proativo e comprometido com as transformações sociais imprescindíveis para um povo que seja digno de seu futuro, sob a égide democrática. Um governo que possa lidar com contradições de interesses de forma firme e serena, mas que não retroceda e nem se amofine diante de ameaças...

Buenas, não me alongarei mais... eleitoralmente eu opto e votarei por manter o atual governo, por esperar que perceba os equívocos cometidos, sem abrir mão de mediações políticas necessárias em uma sociedade plural, como também, das opções inequívocas e necessárias em uma sociedade desigual. Não quero que, ao ousar, se coloque em demasiado risco a perspectiva democrática, mas não quero que se abra mão do entendimento e das iniciativas para uma construção democrática efetiva, a partir de tensões com profundidade, amplitude e abrangência... tensões com raízes de princípios éticos sociais e por horizontes democráticos, que nunca são plenamente alcançados, mas nos fazem buscar o seu rumo. Nesse momento de polarização é preciso escolher, é preciso ter lado... Nesse momento eu estou ao lado de Dilma, ainda sem medo de ser feliz.