"Mudar" para retroceder?

Eis, mais um longo texto reflexivo para poucos leitores e para uma mídia que não comporta esse tipo de mensagem. Mas, afinal de contas, trata-se somente de mais uma forma de subversão, a quem interessar possa.
É claro que alguns dos resultados eleitorais chegam a provocar asco e certa ressaca depressiva.
Mas não podemos esquecer que a tal democracia representativa, quando em escala midiática e preponderância mercantil, também expressa a “competência” dramatúrgica de uns e outros tantos, a “melhor capacidade” de indução ao chamado senso “comum”. Sob condições de domínio quase absoluto dos meios de comunicação por parte de grupos habituados e especializados em falsear e traficar seus interesses particulares e conveniências como se fossem interesses públicos, de “naturalizar” vaidades e valores egoícos como se universais fossem.
Muitas vezes prevalecem os discursos hipócritas de “renovação moral” e de “modernização gerencial”, que adquirem maior apelo em intermédios cíclicos com saturação de projetos políticos partidários.
Ressurgem e somam-se os discursos imbuídos de rancor, ódio e preconceito, sejam explícitos ou velados. Em tais conjunturas afloram ódios de classe, os rancores corporativos e todo o azar de preconceitos que não ousam mostra-se em claro. Muitos saem de suas trincheiras editoriais, de seus púlpitos virtuais e avançam raivosos em afã vingativo, em busca de um oximoro redentor (o novo-decrépito, a regeneração do outrora com disfarce de futuro).
Muitos hão de se iludir com as novas roupagens de velhos discursos.
Não se trata propriamente de sinais de “normalidade” em uma jovem democracia civil, mas de sintomas degenerativos em democracia, servil. Entretanto, não podemos reclamar da mesma somente quando não nos serve ou não contempla nossas melhores expectativas.
No cenário dramatúrgico de tal democracia servil evidenciam-se distintas predisposições ideológicas e abundam as caricaturas intencionais. Saltam os Tiriricas; intimidam os Bolsonaros; ameaçam os Malafaias; os agentes midiáticos especialistas na profusão de generalidades conservadoras e na criminalização de movimentos civis e sociais ganham prerrogativas parlamentares.
A anunciada “terceira via” da “nova política” era inconsistente e uma mistura heterogênea do mesmo de sempre. Agora explicita-se a disputa eleitoral em polarização mais evidente, as nuances em cinza tornam-se subliminares, as mediações cedem o passo para os cooptações de grupos de interesses.
Já não se trata mais de uma disputa entre personagens ou partidos políticos mais visíveis ou mesmo entre genéricos projetos societários (neodesenvolvimentismo domesticado x neoliberalismo reciclado)... Trata-se de disputa em umbral civilizatório.
Se “mudança” significa retornar ao que precisa ser superado, então, como diria Lampedusa: “muda-se para continuar tudo como estava”.
Se a mudança é necessária, torna-se imperativo que seja sinalizada e consubstanciada no aprofundamento e radicalização do que foi iniciado nos últimos 12 anos:
- após uma melhor redistribuição de renda, o desafio da inclusão pela via dos direitos sociais e políticas públicas para cidadãos-sujeitos... não da inclusão pela via mercantil de consumidores assujeitados;
- a radicalização das políticas de equidade social, em gradual substituição das políticas compensatórias;
- a necessária coragem para mudar os rumos de um modo/modelo de desenvolvimento concentrador de renda, socialmente degradante e ambientalmente destruidor, para uma perspectiva, não somente “sustentável”, mas restituidora do equilíbrio perdido;
- a ousadia de inovar e criar instâncias, canais, meios e modos de democracia participativa, não em contraposição, mas em combinação e renovação com a democracia representativa;
- a coragem de garantir direitos civis inalienáveis e participação equânime para as minorias sob o jugo do autoritarismo moral, patriarcal, étnico, racial e machista;
- o exemplo da resistência perante à globalização neoliberal, com solidariedade efetiva com os países e povos mais oprimidos.
Enfim, sei bem que se trata de esperar muito de um próximo governo. Mas também estou convencido que, de imediato e diante da aludida polarização, só existe uma alternativa, inefável esperança, para salvaguardar minimamente algumas dessas tênues insinuações...