Paulo Niederle
Sociology Department - Federal University of Rio Grande do Sul
pauloniederle@gmail.com (email)
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Publicado em: abril 12, 2020 em Sul21
Paulo Niederle (*)
Temos enormes problemas de cognição social. Nossa incapacidade coletiva de armazenamento, codificação e processamento das situações sociais tem nos levado a repetir inumeráveis vezes os mesmos erros. Errar é humano, mas repetir tem sido demasiadamente humano.
Atualmente, em tempos de pandemia, caminhamos para o futuro com a certeza incólume de que nada será como antes. Slavoj Zizek, um dos popstars globais da filosofia contemporânea, já prevê a morte do capitalismo. Parece que Marx havia esquecido de incorporar uma pandemia a sua teoria. De outro modo, o sul coreano Byung Chul Han acredita que, a partir de agora, o capitalismo mostrará sua face mais autoritária. Ambos têm argumentos mais ou menos sólidos para chegar a estas conclusões derradeiras. Podemos escolher qual delas mais nos agrada. Entretanto, o fato é que, se repetirmos os mesmos erros, não chegaremos a lugar muito diferente de onde estamos. E o problema talvez não esteja na maior ou menor magnitude das transformações, mas no modo como as interpretamos.
As grandes narrativas nos têm sido muito úteis para organizar a história… só que de uma forma equivocada. Apesar dos bons historiadores nos desmentirem o tempo todo, nosso imaginário social coletivo tem uma terrível tendência a homogeneizar o passado. Dividimos a história brasileira em grandes ciclos econômicos e criamos a ilusão de que o café era praticamente a única coisa importante na economia do início do século XX. Formulamos um conceito totalizante como nacional-desenvolvimentismo como se ele fosse capaz de sintetizar a existência de uma estratégia coerente de desenvolvimento, quando na verdade tivemos meio século de políticas erráticas e governos com diferentes matizes ideológicos.
O passado recente também é excessivamente simplificado. E não apenas porque isto torna mais factível a tarefa de ensinar, em poucas horas de aula, algo que demandaria um esforço colossal de leitura e debate. Simplificamos porque isto também fortalece nossas narrativas preferidas. Falamos dos governos do PT como se tivessem sido algo tão homogêneo como a areia movediça na qual se sustentaram. Criamos novos adjetivos – ou requentamos os antigos – para dar uma imagem nítida e superficial a processos sociais muito contraditórios: novo-desenvolvimentista, social-desenvolvimentista, e até mesmo liberal-desenvolvimentista – seja lá o que isto for. Até parece que, quanto maior o termo, melhor ele aderente aos nossos discursos políticos e aos nossos modelos analíticos.
Repetimos o mesmo erro em relação ao futuro. Essas narrativas sobre nosso porvir nos ajudam a codificar, sistematizar e, sobretudo, explicar de maneira simples as tendências que identificamos neste momento. É verdade que não há espaço no discurso político para muitos “poréns”. A imprensa adora os filósofos capazes de sintetizar o futuro em uma única sentença. Assim, ainda que as incertezas reinem, tentamos explicar o futuro em uma página. Os alunos geralmente adoram. Eu adoro, porque não tenho tempo para ler, nem durante esta quarentena. Melhor ainda se pudermos resumir em 140 caracteres para postar no Twitter. O problema, neste caso, é que “liberal-desenvolvimentista” já tem 27 caracteres. Uma explicação mais aprofundada demandará um podcast de dois minutos.
As narrativas totalizantes ajudam a disputar o futuro. Elas têm uma função política essencial: criam um cenário (geralmente catastrófico), delimitam qual é o problema (escolha entre o Mercado ou o Estado), e propõem uma solução mágica para o mesmo (agora é a cloroquina!). Pronto! Se as pessoas acreditam, o futuro torna-se uma profecia que se auto-realiza e, ao final, podemos dizer que estivemos certos. Um pouco de espaço na mídia pode ajudar muito.
Cientistas sociais não deveriam acreditar nestas narrativas. Afinal, foram (deveriam ter sido) “treinados” para desconfiar das explicações muito simplórias para problemas sociais complexos. No entanto, quanto maiores as incertezas, mais seguros parecemos estar de que sabemos o que vem pela frente. Aprendemos com a história. O problema é que, muitas vezes, foi com aquela história mal contada das grandes narrativas.
O fato é que conhecemos nosso futuro tanto quanto o vírus que nos ataca. Embora didático, não é correto traçar comparações muito estreitas entre o que vivenciamos neste momento e as crises anteriores. O cenário atual tem pouco em comum com a crise de 1929, e quase nada de similar com uma guerra mundial. Concordamos com Arílson Favareto quando sugere que “o mundo do século XXI se parecerá cada vez menos com o século passado, no qual foram gestados os grandes modelos de organização social que experimentamos até aqui.”(1) Além do atual estágio da globalização, há que se considerar que nunca tivemos uma crise ecológica (mudança climática) com a magnitude e as características da atual. E isto para citar apenas dois aspectos de uma problemática que demanda respostas inovadoras e complexas. Precisamos de respostas capazes de lidar com as contingências e contradições, e não de novas narrativas cheias de certezas.
De certo modo, construímos uma falsa imagem de que apenas o presente é complexo, contraditório e cheio de incertezas… Sim, está bem, você tem razão! Também temos a imagem de que o futuro é incerto. Mas só porque não o conhecemos, e não porque ele será inerentemente incerto. Um artigo recente do pesquisador inglês Ian Scoones (2) chama a atenção para a necessidade de efetivamente incorporarmos a incerteza como um componente indispensável das nossas interpretações. Qualquer que seja ele, o futuro será incerto, contraditório e não seguirá apenas uma trajetória.
A disputa pelo futuro já começou. Se entrarmos na briga com a narrativa de um futuro único e inevitável, já perdemos. Repetiremos os mesmos erros. Pode até ser que uma parte do nosso “futuro imaginado” – para usar o título de um dos melhores livros que li nos últimos anos, do sociólogo alemão Jens Beckert – se realize. Nossos grupos políticos preferidos podem até mesmo voltar ao “poder”. Mas continuaremos muito distantes de compreender a complexidade das mudanças sociais e ecológicas que estão em curso. Não demorará, portanto, para sermos derrotados por nossa própria incapacidade de construir modelos políticos e analíticos que abram as possibilidades para novas formas de sociedade.
(*) Professor de Sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Notas
(1) Favareto, A. E depois da pandemia? Reinventar o futuro.
(2) Scoones, I. (2019). What is Uncertainty and Why Does it Matter?, STEPS Working Paper 105, Brighton: STEPS Centre.
(3) Beckert, J. (2016). Imagined Futures: Fictional Expectations and Capitalist Dynamics. Harvard University Press.
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