Do discurso da “alternância de poder” como falácia democrática

Tenho ouvido e lido acerca de argumentos justificativos para a votação na “oposição”, agora personificada na candidatura de Aécio Neves, em razão de uma necessária “alternância de poder”, recomendada como remédio para a consolidação “democrática”. São discursos proferidos por um espectro amplo de disposições ideológicas e ideoplásticas, desde o messianismo fascistoide de Silas Malafaia, até o “neoliberalismo verde” do convertido Eduardo Jorge.
De que premissas e de que contexto “democrático” estamos tratando?
Em regimes tidos como “democráticos” no chamado “primeiro mundo”, as disposições políticas orientadas para projetos societários e veiculadas por grupos de interesses partidários chegaram a tal grau de indiferenciação substancial, que buscam distinguir-se mais por nuances reformistas, sempre autorreguladas. Democratas e Republicanos (EUA), Trabalhistas e Conservadores (Inglaterra), “Socialistas” europeus de diversos matizes, “Verdes” híbridos e pasteurizados... disputam eleitoralmente encargos governamentais para atuarem como síndicos de um condomínio de interesses privados interdependentes, sob o consentimento indiferente ou a alienação voluntária da maioria. A “estabilidade política” de tais regimes democráticos (tão necessária no pós-guerra, mas depois consolidada por intercâmbio e acomodação de grupos de interesses afins) paradoxalmente requer instabilidade aparente (vide o caso do parlamentarismo italiano) e ciclos de “alternância de poder”. Prevalece a inspiração do personagem Tancredi, que continua a sussurrar desde o enredo de Lampedusa: “algo deve mudar para que tudo continue como está”
Em tais contextos de democracia condominial, quando o “possível da política” é reduzido e acondicionado aos termos da “política do possível”, ocorre saturação cíclica de atores governamentais e de ênfases discursivas “renovadoras”, daí, pois, há também necessidade de “alternância de poder”, desde que circunscrita aos ciclos de reformismo autorregulado, de “governança” simbiótica entre predadores e seus séquitos de pequenos maquiavéis. Tempos em que a democracia civil se reduz em servil, ser vil.
Também deveríamos aspirar tal “alternância de poder” para o caso brasileiro? Muitos assim o desejam: um futuro democrático “estável”, com alternância bipolar em disputas figurativas, com governabilidade palaciana de pendor mais híbrido e “pragmático”, tendente ao reformismo autorregulado, intermediada pelos mercadores da “pequena política”, amparada pelo senso comum acomodado, sob os auspícios da elite sobrenadante... Ciclos de neoliberalismo subalterno alternados com ciclos de (neo)desenvolvimentismo domesticado. É claro que outros tantos não ensejam e nem desejam realmente tal perspectiva, apenas utilizam tal argumento de forma oportunista (algo assim como o compenetrado candidato Aécio se comprometendo com o fim da reeleição... somente para depois de 2022).
Quando há premissa de que os projetos políticos, ora encarnados por Dilma e Aécio, são equivalentes em substância e distinguíveis somente em suas nuances adjetivas e ênfases de alinhamento global, então, a “alternância de poder” é receitada para desacomodar e reciclar o governo. Assim, para a dita “opinião pública”, reforça-se a convicção que a maioria governante é “parasita” e “corrupta”, sendo que, deve ter seu ciclo encerrado, mesmo que para ser substituída por outros com a mesma índole (até que o novo governo também deva ser reciclado).
Em certa medida, a noção de inevitabilidade e dependência de um modo de governabilidade negociado no mercado da “pequena política” (“toma-lá-dá-cá”, tráfico de interesses privados em disfarces públicos, loteamentos de cargos executivos...) infelizmente são prevalentes na “vida pregressa” de ambos os projetos políticos, ora em disputa. Mas uma distinção deve ser realçada, não como nuance eventual, mas como substancialidade histórica: enquanto Fernando Henrique e o PSDB engendraram, fomentaram e guarneceram tal mercado palaciano da “pequena política” (não só em função da reeleição); Lula e o PT sabiamente evitaram a aventura populista como modo de constituir governabilidade diretamente com as “praças”, mesmo nos momentos mais críticos, mesmo tendo também se tornado reféns de tal armadilha da governabilidade palaciana.
Todavia há outra diferenciação bem mais substancial entre os projetos políticos em disputa. Ao ponto de estabelecer outro tipo e perspectiva de alternância necessária: da era republicana de 114 anos (de 1889 a 2003) para a era atual e, espero, vindoura. Pode-se afirmar - sem temor de ironias ao consagrado jargão - “nunca antes na história desse país” houve efetivamente a opção política inequívoca e tamanha proatividade pela inclusão social e redistribuição de renda. Iniciativas que podem quedar-se contidas em termos de reformismo autorregulado, mas configuram-se como substrato potencial para transformações históricas mais profundas e abrangentes.
Em curto prazo, dada a polarização eleitoral imediata, a guarita e salvaguarda para a potencialidade política e possibilidade histórica de transformação social mais efetiva, profunda e abrangente só tem um lado: apostar na continuação do atual governo e aprofundar a “alternância de poder” que realmente faz a diferença: da Casa-Grande, que habita em nós sob os mais variados disfarces... para uma sociedade democrática em compromisso solidário.