Presunção de Inocência e Estado de Direito

O Estado de Direito, como ressalta o jurista Neil MacCormick, é em geral compreendido como o Estado do governo das leis. Um Estado do governo das leis pressupõe que as condutas dos cidadãos devam ser disciplinadas por normas jurídicas previamente estabelecidas e não pelo simples arbítrio dos governantes. A ideia é que as nossas condutas sejam pautadas por normas jurídicas prévias e não pela simples vontade de quem está no poder.

Nesse contexto, existe um papel destacado da teoria da argumentação e da vinculação dos juízes e dos juristas em geral à busca da resposta correta para a solução de problemas jurídicos, mesmo que após o percurso argumentativo na busca da resposta correta, tenhamos, ao final, mais de uma resposta razoável possível. MacCormick, assim, ensina:

"Se o Estado de Direito significa um governo das leis e não dos homens, ele é impossível de se realizar se a tese da infalibilidade judicial é verdadeira. (...) A idéia é que as pessoas que proferem as decisões jurídicas são responsáveis por defender e implementar o Direito, em vez de criá-lo por meio de suas decisões." (MACCORMICK, Retórica e Estado de Direito, p. 363)

Tal posição tem consequências diretas sobre a teoria da argumentação, pois o estudo e a necessidade de argumentação pressupõem a tentativa de demonstração da melhor adequação do argumento em relação a outros rivais. Opiniões, na teoria da argumentação, não podem ser autocertificadoras simplesmente pela autoridade de quem opina.

Contudo, Neil MacCormick adverte que o entendimento pela correção das decisões simplesmente  fundadas na competência de quem decide pode ser útil quando, para além dos instrumentos argumentativos, na busca da resposta correta, o Direito, objetivando determinação, permaneça incompleto.

Tal utilidade não significa, entretanto, a autocertificação e a ausência da necessidade da busca da resposta correta por meio da argumentação. Na realidade, significa uma posição conciliadora, que admite a necessidade de o Direito estar centrado na argumentação voltada para a resposta correta, mas aceita que, após o caminho argumentativo ter sido percorrido, remanesça mais de uma resposta razoável possível. Nesse ponto, nós humanos, que não somos oniscientes, em algumas situações, temos que nos socorrer da opinião da autoridade de última instância e maior hierarquia para definir a resposta presumida como a correta.

A decisão sobre o momento da possibilidade de prisão para início de cumprimento de pena parece ser um desses “casos difíceis” em que mais de uma resposta razoável é possível. Tanto as interpretações jurídicas que entendem pela possibilidade de prisão após julgamento de segunda instância, quanto as interpretações no sentido da possibilidade de prisão somente após o trânsito em julgado da decisão condenatória são razoáveis.

O artigo 5º, LVII, da Constituição Federal estabelece o princípio da presunção de inocência até o trânsito em julgado de decisão condenatória. Somado ao dispositivo constitucional, o artigo 283 do Código de Processo Penal determina que ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou nos casos de prisão temporária e preventiva. Assim, por uma interpretação sistemático-literal, no âmbito do sistema processual penal, é razoável compreender que a prisão para cumprimento de pena só possa ocorrer após decisão condenatória transitada em julgado. A esse argumento se aderem os argumentos que: i) a presunção de inocência afasta a culpabilidade – por consequência o crime e a aplicação de pena – e; ii) a presunção de inocência é um direito humano não passível de restrição.

Contudo, uma outra interpretação constitucional razoável é possível, pois desde a sua promulgação, na linha da tradição do Direito Penal Brasileiro, a Constituição Federal foi interpretada no sentido da possibilidade de cumprimento de pena após a decisão de segunda instância. Somente entre os anos de 2009 e 2016 o Supremo Tribunal Federal adotou a posição antagônica acima referida.

A segunda corrente interpretativa, portanto, entende pela possibilidade de aplicação da pena após decisão de segunda instância, mesmo antes do trânsito em julgado. O fundamento principal é que a Constituição Federal determina a aplicação do princípio da presunção de inocência até o trânsito em julgado, mas não veda a prisão antes do trânsito em julgado. Vários tipos de prisão são possíveis sem trânsito em julgado de decisão condenatória: flagrante, preventiva, temporária, para extradição, etc. Assim, no ordenamento jurídico brasileiro é possível prender o presumidamente inocente (não considerado culpado) em certas situações.

Nesse contexto, após o esgotamento dos juízos ordinários que avaliam os fatos e as provas, seria possível a execução provisória da pena, mesmo considerando a possibilidade de pendência de recursos especial e extraordinário que têm por objeto a análise restrita de matéria de direito. Assim, o artigo 283 do Código de Processo Penal deve ser compreendido como inconstitucional no ponto específico que exige o trânsito em julgado da decisão condenatória para a possibilidade de prisão. O referido dispositivo, por essa interpretação constitucional, deveria ser lido como autorizando a prisão em casos de prisão em flagrante, temporária, preventiva e decorrente de decisão condenatória de segunda instância.

O que fundamentaria a inconstitucionalidade da exigência de trânsito em julgado da decisão condenatória? A Constituição não faz essa exigência de forma expressa, pois apenas estabelece a presunção de inocência até o trânsito em julgado, sendo que o princípio da presunção de inocência, que define que o acusado não será considerado culpado até o trânsito em julgado da decisão condenatória, é uma norma de julgamento que define que, ao decidir, o magistrado deve presumir a inocência do acusado. A presunção de inocência não seria, dessa forma, contraditória com a execução provisória da pena, pois, nos julgamentos dos recursos especiais e extraordinários, os magistrados devem se ater a norma de julgamento de presunção de inocência mesmo com o acusado preso.

O principal fundamento da inconstitucionalidade da exigência de trânsito em julgado da decisão condenatória para a prisão nesses casos, entretanto, reside na violação de outro princípio constitucional tão importante quanto o princípio da presunção de inocência. Qual seria ele? O princípio do Estado de Direito analisado no início deste escrito.

O princípio do Estado de Direito tem como sentido geral o governo das leis. Como acima assinalado, por esse princípio as condutas dos cidadãos devem ser disciplinadas por normas jurídicas e não pelo arbítrio simples dos governantes. Na prática, a exigência de trânsito em julgado da decisão condenatória para o início de cumprimento de pena elimina o grau de eficácia razoável necessário para o sistema de normas penais funcionar. Sem um grau de eficácia razoável o sistema de normas que deveria pautar as nossas condutas não alcança a sua finalidade de disciplina geral das condutas numa dada sociedade.

E qual a consequência dessa perda de eficácia razoável necessária para a manutenção do Estado de Direito? Um nível de impunidade incompatível com o Estado de Direito.

Para reforçar essa impossibilidade prática da exigência do trânsito em julgado para o início do cumprimento da pena basta referir que o nosso sistema possibilitaria ao acusado o julgamento por quatro instâncias antes da prisão. Tal possibilidade de recurso a quatro instâncias de julgamento não tem paralelo em qualquer outro sistema jurídico. Combinado esse fator das quatro instâncias de julgamento com as normas de prescrição do sistema penal brasileiro tem-se como resultado a inviabilidade de aplicação da pena na maioria dos casos. A inviabilidade, ainda, é mais acentuada nos casos em que os acusados gozam de maior poder aquisitivo para contratar bons advogados. Por conseguinte, é possível também argumentar que a exigência de trânsito em julgado para a prisão em cumprimento de pena viola o princípio da igualdade e da não discriminação.

Finalmente, é necessário ressaltar que mesmo a segunda interpretação mantém o sistema penal brasileiro um dos mais protetivos em termos normativos ao acusado, pois garante o duplo grau de jurisdição antes da prisão para cumprimento de pena e garante o duplo grau de jurisdição de juízos extraordinários que podem reverter a condenação ainda sob égide do consagrado princípio da presunção de inocência.

Dito o todo acima, não é demais destacar que a oportunidade adequada para uma análise jurídica tão complexa e difícil não é a do julgamento de um Habeas Corpus impetrado em favor de um ex-presidente da República acusado de chefiar um sistema de corrupção de proporções incalculáveis. Nesse caso, motivos políticos, ideológicos ou mesmo pessoais poderão comprometer a melhor técnica jurídica-constitucional.

Rafael de Freitas Valle Dresch (04/04/2018)