A corrupção na ditadura militar segundo um de seus líderes

As nuvens e as chuvas que resolveram permanecer em Porto Alegre na primavera de 2015 provocaram um efeito colateral: mais tempo para leitura. Assim, pus-me a percorrer com os dedos as estantes em busca de algo interessante. Talvez um acaso, talvez intuição, talvez uma memória inconsciente, mas descobri um livro fino, com 208 páginas, de capa marrom, quase escondido. O leitor se perguntará como um livro com este número de páginas pode ser fino e ficar escondido. Bem, fino é, escondido nem tanto.

O autor era conhecido como Hugo Abreu. Nome por extenso: Hugo de Andrade Abreu. Nascido em 1916, Juiz de Fora, falecido em 1979, no Rio de Janeiro. Foi General de Divisão do Exército Brasileiro. Participou da Segunda Guerra, atuando na Força Expedicionária Brasileira na campanha da Itália, acredito que como capitão. Recebeu a Cruz de Guerra de 1ª. Classe por atos de bravura em combate. Uma parte de sua formação deu-se nos Estados Unidos da América. Desde o primeiro momento integrou as forças militares que promoveram o golpe de 1964, e que implantou a ditadura no Brasil. Comandou a Brigada de Infantaria Paraquedista, uma unidade radicalizada à direita. Foi responsável por “acalmar” esta unidade. Isto significa que foi capaz de controlar a constante ameaça que os paraquedistas representavam a outros grupos integrantes do processo autoritário junto ao Estado brasileiro. Também como comandante desta unidade, teve participação nas operações que terminaram por derrotar a guerrilha do Araguaia.

Posteriormente, em decorrência de sua lealdade e eficiência nos marcos do regime, ocupou a Chefia do Gabinete Militar no Governo Geisel, de 1974 a 1978.

Em 1977 desatou-se uma intensa luta pela sucessão de Geisel. O General Silvio Frota era visto como potencial candidato e, grosso modo, era contrário a um abrandamento da ditadura, representando os grupos mais à direita no espectro militar. O grupo contrário era aquele organizado em torno do General Golbery do Couto e Silva, que diante da crise econômica que se avizinhava, e das novas e crescentes mobilizações de massas em prol de abertura democrática, que aconteciam nos grandes centros urbanos, acenava com distensão, desde que controlada pelos militares. O candidato deste grupo era o General João Figueiredo.

Se em um primeiro momento, Hugo Abreu colaborou para a derrota de Frota, ensejada pelas medidas do Pacote de Abril (fechamento do Congresso, introdução dos senadores biônicos, extensão do mandato presidencial para seis anos, dentre outras medidas, todas para dar um fôlego ao regime), logo depois, em 1978, ao rejeitar João Figueiredo como candidato do regime, pediu exoneração de seu cargo de Chefe do Gabinete Militar. Desde então, até sua morte, tratou de combater o grupo que chamava de palaciano, denunciando suas ações e articulando forças.

Pois bem, qual não foi a minha surpresa em reencontrar um mundo que parece ter sido “perdido” pelos atuais jornais, revistas e meios de comunicação brasileiros. Reencontrei a corrupção estatal na ditadura militar. Segundo denúncia de um de seus próprios líderes, talvez situado em uma posição um tanto mais à direita. Reproduzo as doze denúncias de Hugo Abreu. Antes mostrarei as suas próprias palavras acerca do problema da corrupção e dos governos militares:

“O que há de alarmante na situação presente são as acusações contra os membros do primeiro e segundo escalões do Governo, e o que a torna mais séria ainda é a insensibilidade de todo o Governo para com o problema. O Governo não só não as apura, como parece, mesmo, não se interessar pelas acusações, as mais graves, inclusive a envolver ministros seus. E quando age é no sentido de procurar dificultar as averiguações, tornando-se cúmplice e não juiz, como seria de se esperar. ” (Abreu, 1979, p.191).

Entre uma nuvem e outra, vamos às denúncias do General (Abreu, 1979, p.192):

1-      Embaixador brasileiro em Paris acusado de receber comissões sobre transações financeiras do Governo com banqueiros europeus. A ditadura processou o denunciante;

2-      Ministro de Minas e Energia anunciou novo campo de petróleo na Bacia de Santos. Era um anúncio que se demonstrou sem fundamento. As suspeitas eram de que teria havido benefícios para uma empresa financeira operando na Bolsa de Valores, ligada ao então Chefe do Gabinete Civil;

3-      Denúncia da revista alemã Der Spiegel sobre irregularidades no Programa Nuclear Brasileiro e que favoreciam ilegalmente empresa de dois Ministros de Estado. O Senado conseguiu montar uma CPI. O presidente do Senado proibiu a CPI de continuar funcionando;

4-      O Governo Federal adquiriu o acervo da Light (empresa que controlava a distribuição de energia no Rio de Janeiro) por preços acima do mercado e por bens que em dez anos se tornariam automaticamente pertencentes ao Estado, em decorrência do contrato de concessão. O valor envolvido era de cerca de 400 milhões de dólares.

5-      Denúncia comprovada de favorecimento irregular das empresas do cidadão estadunidense Daniel Ludwig. Era o famoso caso envolvendo a empresa Jari, na selva amazônica. O Governo processou o jornal que havia publicado o caso;

6-      O favorecimento da multinacional Dow Chemical S.A. em um empréstimo junto ao BNDE em 1974, operado pelo General Golbery, que era o representante da empresa no Brasil. Posteriormente, já como Chefe do Gabinete Civil, o General teria continuado a receber diretores da empresa no próprio Palácio do Planalto. O assunto foi denunciado no Senado, mas não foram adiante nas investigações;

7-      Corrupção e irresponsabilidade na construção da Ferrovia do Aço, envolvendo o Ministério dos Transportes. A obra começou sem os devidos planejamentos e previsão de custos. Estes custos explodiram e à medida que a crise econômica crescia a obra foi sendo paralisada.

8-      A Caixa Econômica Federal, em uma série de operações “atípicas”, entrou em sério desequilíbrio financeiro. A causa foi carrear recursos para a Ferrovia do Aço;

9-      Um Major denunciou, com documentos a apoiá-lo, que no encaminhamento da Campanha da Pechincha (campanha publicitária com vistas a conter a inflação) houve operações irregulares, com a atuação de um Ministro de Estado. O Major foi preso por trinta dias em Nioaque, então Mato Grosso. (Meu comentário: localizei uma referência a esta campanha publicitária e seus problemas envolvendo dinheiro para meios de comunicação. Está no livro de Sérgio Caparelli, Comunicação de Massas sem Massa, publicado pela Summus Editorial, com 1ª edição em 1980 e 5ª edição até 1986. O caso foi publicado inicialmente pelo jornal Estado de São Paulo em 11/outubro/1978).

10-  Irregularidades e favorecimento de empresas no Polo Petroquímico de Camaçari, denunciado pelo Deputado João Cunha, MDB. Envolviam dois Ministros de Estado;

11-  Os contratos de exploração de risco para exploração da madeira na Amazônia com firmas estrangeiras, anúncio do próprio Governo, através do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal. (Meu comentário: aqui é a inconformidade de Hugo Abreu com o que ele considera ser uma desnacionalização e um problema de ordem ecológica);

12-  Ação do Governo junto ao Congresso impedindo instalação de CPI para apurar casos de corrupção no Estado (ocultação de desvios da ordem de 10 milhões de cruzeiros em órgãos federais; uso de recursos do Banco Central para sanear setor financeiro sem as devidas informações deste uso, em especial em relação ao Banco Econômico; desaparecimento dos guindastes comprados na Alemanha Oriental pelo Departamento Nacional de Portos e Vias Navegáveis na gestão do Coronel Mário Andreazza no Ministério dos Transportes; denúncia de propina da empresa Ingram para obter encomendas da Petrobrás, envolvendo engenheiro da empresa; se o General Araken de Oliveira, Presidente da Petrobrás, era acionista da Neymo, falida de forma fraudulenta; funcionário da Petrofértil propôs mediante propina considerar a empresa AR Industrial vitoriosa na concorrência, sendo que essa empresa tinha um perfil que implicava mais gastos no funcionamento dos equipamentos; superfaturamento de encomendas da Dow Chemical; denúncia do Presidente da General Eletric no Brasil, sobre subornos para a Rede Ferroviária Federal comprasse 195 locomotivas em condições contratuais irregulares; denúncias de superfaturamento na aquisição de vagões da Westinghouse para o Metrô de São Paulo; etc.).

 

Ufa! E parece que isso era apenas uma parte do problema. Em uma ditadura, estes acontecidos não são tranquilamente publicados, não vão aos tribunais, os denunciantes são perseguidos, e quando resolvidos tem apenas como maior objetivo a preservação do regime e do grupo que está no poder.

A atual campanha a favor de uma intervenção militar se enquadra em um contexto maior. Não são apenas saudosistas a se manifestar. As teclas são batidas no mesmo tom, em todos os cantos do país. Há um clima de repetir os absurdos até a exaustão. Daí que, passo seguinte, os absurdos são naturalizados, e se transformam em alternativas e panaceia para todos os males.

A democracia não resolve problemas de ordem econômica. A democracia é um meio pelo qual podemos resolver problemas políticos, dentre eles o da corrupção. A atual democracia é invenção do mundo capitalista e liberal. A atual corrupção também. Não será um regime ditatorial aquele que vai mudar esta equação. Mutatis mutandis, eu prefiro ficar com as dificuldades democráticas do que com os fetiches de um mundo falsamente ordenado.

A primavera em Porto Alegre de 2015 está com um ar de melancolia, e um tanto triste. Muitas nuvens. Vão passar. Enquanto isto, aproveitemos para refletir. Os dedos percorrendo as estantes podem descobrir preciosidades.

 

Referência Bibliográfica

Abreu, Hugo. O outro lado do poder. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979.